terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Partilho convosco um excerto de um livro encontrado numa banquinha em segunda mão, cheio de pó, uma capa antes branca agora só as letras douradas reluziam...Psicologia e Pedagogia! Kafka ilustra de uma forma muito acertada, a meu ver, um dos paradigmas da educação, um calcanhar de aquiles actual e comum, infelizmente.

"Eu não servia para nada. Tu encorajavas-me, por exemplo, quando eu andava a passo e cumprimentava bem, mas eu não era um futuro soldado; ou então encorajavas-me quando conseguia comer copiosamente ou até beber cerveja, quando repetia canções que não compreendia ou repisava as tuas frases favoritas, mas nada de tudo isso pertence ao meu futuro. E é significativo que ainda hoje não me encorajes senão nas coisas que te tocam pessoalmente, quando está em causa o sentimento do teu valor, ou porque eu o firo(por exemplo, pelo meu projecto de amor) ou porque é ferido através de mim (por exemplo quando alguém me insulta)... de que me poderia servir o encorajamento se só aparece quando não se trata de mim em primeiro lugar?"
Está aqui formulada uma queixa( que se encontra em muitas situações familiares conflituais): sob a máscara de liberalismo, o "encorajamento" paterno dissimula uma autoridade baseada na violência. O pai espera do filho que ele execute o que para ele foi previsto. A liberdade dada ao filho é ilusória: este não tem outra saída senão na adaptação ao mundo paterno. Quando os métodos liberais de manipulação fracassam, o pai volta à força física.
" A impossibilidade de ter relações pacíficas contigo teve ainda outra consequência, na verdade bem natural: perdi o uso da palavra... Desde muito cedo me proibiste de tomar a palavra "Nada de Respostas!" - esta ameaça e a mão erguida que a sublinhava desde sempre me acompanharam. Diante de ti - quando se tratava dos teus assuntos, eras um excelente orador - contraí uma maneira de falar sacudida e gaguejante, mas foi ainda de mais para o teu gosto e acabei por me calar, primeiro talvez por desafio, depois porque já não podia pensar nem falar na tua presença. E como tu eras o meu verdadeiro educador, os efeitos fizeram-se sentir durante toda a minha vida.
Se eu tivesse obedecido menos bem, estarias decerto muito mais satisfeito comigo. O teu sistema pedagógico acertou em cheio; não escapei a nenhuma influência; tal como sou, sou o resultado da tua educação e da minha obediência...tu dizias "Nada de respostas", querendo assim levar a calarem-se em mim as forças que te eram desagradáveis, mas o efeito produzido era excessivamente forte, eu era excessivamente obediente."

in, Mannoni, Maud,Psicologia e Pedagogia

Com as devidas ressalvas da época onde se insere e da própria corrente da psicologia emergente, este texto traz à luz um dos grandes conflitos educacionais e onde reside para mim a verdadeira liberdade e também o grande desafio...a capacidade de aceitação do filho como ser individual, não um espelho de ânsias e sonhos parentais, mas sim um ser humano com espaço e apoio para se auto experienciar, sem exigências de um passado não seu...apenas herdado.

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