segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O Paradigma Anarquista na Educação

Prof. Dr. Sílvio Gallo

Artigo publicado em Nuances – Revista do Curso de Pedagogia, Presidente Prudente: FCT UNESP, nº 2, 1996- retirado da página: O Paradigma Anarquista em Educação, acesso em 26/03/2007.
 
O Anarquismo vem sendo recuperado, pelo menos ao nível das pesquisas acadêmicas, como uma filosofia política; tal recuperação ganhou mais razão de ser com a propalada “crise dos paradigmas” nas ciências sociais, intensificada com os acontecimentos políticos nos países do leste europeu e na ex-União Soviética, com a queda do socialismo real. Ante a falta de referenciais sólidos para uma análise política da realidade cotidiana, o Anarquismo volta à cena.
Quando estudamos o Anarquismo, porém, vemos que seria muito mais correto falarmos em Anarquismos, e não seriam poucos… Como, então, falarmos em um paradigma anarquista? Muito rapidamente, gostaria de demonstrar aqui que considerar o Anarquismo uma doutrina política é um sério problema, tanto prática quanto conceitualmente. Dada a diversidade de perspectivas assumidas pelos diversos teóricos e militantes do movimento anarquista histórico, seria impossível agrupá-las todas numa única doutrina; por outro lado, a força do Anarquismo estaria justamente no fato de não caber a ele a solidificação de princípios que impõe a constituição de uma doutrina. Se ele pode ser uma teoria política aglutinadora de largas parcelas do movimento operário europeu no século passado e se pode ser também uma teoria política que permite a análise dos fatos sociais contemporâneos é justamente porque não se constitui numa doutrina.
O PARADIGMA ANARQUISTA
Para que entendamos a real dimensão da filosofia política do anarquismo, é necessário que o entendamos como constituído por uma atitude, a de negação de toda e qualquer autoridade e a afirmação da liberdade. O próprio ato de transformar essa atitude radical em um corpo de idéias abstratas, eternas e válidas em qualquer situação seria a negação do princípio básico da liberdade. Admitir o Anarquismo como uma doutrina política é provocar o seu sepultamento, é negar sua principal força, a afirmação da liberdade e a negação radical da dominação e da exploração.
Devemos, assim, considerar o anarquismo como um princípio gerador, uma atitude básica que pode e deve assumir as mais diversas características particulares de acordo com as condições sociais e históricas às quais é submetido. O princípio gerador anarquista é formado por quatro princípios básicos de teoria e de ação: autonomia individual, autogestão social, internacionalismo e ação direta. Vejamos brevemente cada um deles.
Autonomia individual: o socialismo libertário vê no indivíduo a célula fundamental de qualquer grupo ou associação, elemento esse que não pode ser preterido em nome do grupo. A relação indivíduo/sociedade, no Anarquismo, é essencialmente dialética: o indivíduo, enquanto pessoa humana, só existe se pertencente a um grupo social – a idéia de um homem isolado da sociedade é absurda -; a sociedade, por sua vez, só existe enquanto agrupamento de indivíduos que, ao constituí-la, não perdem sua condição de indivíduos autônomos, mas a constroem. A própria idéia de indivíduo só é possível enquanto constituinte de uma sociedade. A ação anarquista é essencialmente social, mas baseada em cada um dos indivíduos que compõem a sociedade, e voltada para cada um deles.
Autogestão social: em decorrência do princípio de liberdade individual, o Anarquismo é contrário a todo e qualquer poder institucionalizado, contra qualquer autoridade e hierarquização e qualquer forma de associação assim constituída. Para os anarquistas a gestão da sociedade deve ser direta, fruto dela própria, o que ficou conhecido como autogestão. Radicalmente contrários à democracia representativa, onde determinado número de representantes é eleito para agir em nome da população, os libertários propõem uma democracia participativa, onde cada pessoa participe ativamente dos destinos políticos de sua comunidade.
Internacionalismo: a constituição dos Estados-nação europeus foi um empreendimento político ligado à ascensão e consolidação do capitalismo, sendo, portanto, expressão de um processo de dominação e exploração; para os anarquistas, é inconcebível que uma luta política pela emancipação dos trabalhadores e pela construção de uma sociedade libertária possa se restringir a uma ou a algumas dessas unidades geopolíticas às quais chamamos países. Daí a defesa de um internacionalismo da revolução, que só teria sentido se fosse globalizada.
Ação direta: a tática de luta anarquista é a da ação direta; as massas devem construir a revolução e gerir o processo como obra delas próprias. A ação direta anarquista traduz-se principalmente nas atividades de propaganda e educação, destinadas a despertar nas massas a consciência das contradições sociais a que estão submetidas, fazendo com que o desejo e a consciência da necessidade da revolução surja em cada um dos indivíduos. Pode-se dizer que a principal fonte da ação direta foi a da propaganda, através dos jornais e revistas, assim como da literatura e do teatro. Outro veio importante foi o da educação, propriamente dita – formal ou informal – como veremos adiante.
Tomando o Anarquismo como princípio gerador, ancorado nesses quatro princípios básicos, podemos falar nele como um paradigma de análise político-social, pois existiria assim um único Anarquismo que assumiria diferentes formas e facetas de interpretação da realidade e de ação de acordo com o momento e as condições históricas em que fosse aplicado. É nesse sentido que trataremos, aqui, da aplicação do paradigma anarquista à teoria da educação.
A EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA
Os anarquistas sempre deram muita importância à questão da educação ao tratar do problema da transformação social: não apenas à educação dita formal, aquela oferecida nas escolas, mas também àquela dita informal, realizada pelo conjunto social e daí sua ação cultural através do teatro, da imprensa, seus esforços de alfabetização e educação dos trabalhadores, seja através dos sindicatos seja através das associações operárias.
Foi com relação à escola, porém, que vimos os maiores desenvolvimentos teóricos e práticos no sentido da constituição de uma educação libertária.
Os esforços anarquistas nesta área principiam com uma crítica à educação tradicional, oferecida pelo capitalismo, tanto em seu aparelho estatal de educação quanto nas instituições privadas – normalmente mantidas e geridas por ordens religiosas. A principal acusação libertária diz respeito ao caráter ideológico da educação: procuram mostrar que as escolas dedicam-se a reproduzir a estrutura da sociedade de exploração e dominação, ensinando os alunos a ocuparem seus lugares sociais pré-determinados. A educação assumia, assim, uma importância política bastante grande, embora ela se encontrasse devidamente mascarada sob uma aparente e propalada “neutralidade”.
Os anarquistas assumem de vez tal caráter político da educação, querendo colocá-la não mais ao serviço da manutenção de uma ordem social, mas sim de sua transformação, denunciando as injustiças e desmascarando os sistemas de dominação, despertando nos indivíduos a consciência da necessidade de uma revolução social.
Metodologicamente, a proposta anarquista de educação vai procurar trabalhar com o princípio de liberdade, o que abre duas vertentes de compreensão e de ação diferenciadas: uma que entende que a educação deve ser feita através da liberdade e outra que considera que a educação deva ser feita para a liberdade; em outras palavras, uma toma a liberdade como meio, a outra como fim.
Tomar a liberdade como meio parece-me um equívoco, pois significa considerar, como Rousseau, que a liberdade seja uma característica natural do indivíduo, posição já duramente criticada por Bakunin; por outro lado, equivale também à metodologia das pedagogias não-diretivas, alicerçadas no velho Emílio e consolidadas nos esforços escolanovistas, delas diferenciando-se apenas nos pressupostos políticos, mas sem conseguir diferentes resultados práticos além daquela suposta liberdade individualizada característica das perspectivas liberais.
Tomar, de outro modo, a pedagogia libertária como uma educação que tem na liberdade o seu fim pode levar a resultados bastante diferentes. Se a liberdade, como queria Bakunin é conquistada e construída socialmente, a educação não pode partir dela, mas pode chegar a ela. Metodologicamente, a liberdade deixa de ser um princípio, o que afasta a pedagogia anarquista das pedagogias não-diretivas; por mais estranho que possa parecer aos olhos de alguns, a pedagogia anarquista deve partir, isso sim, do princípio de autoridade.
A escola não pode ser um espaço de liberdade em meio à coerção social; sua ação seria inócua, pois os efeitos da relação do indivíduo com as demais instâncias sociais seria muito mais forte. Partindo do princípio de autoridade, a escola não se afasta da sociedade, mas insere-se nela. O fato é, porém, que uma educação anarquista coerente com seu intento de crítica e transformação social deve partir da autoridade não para tomá-la como absoluta e intransponível, mas para superá-la. O processo pedagógico de uma construção coletiva da liberdade é um processo de des-construção paulatina da autoridade.
Tal processo é assumido positivamente pela pedagogia libertária como uma atividade ideológica; posto que não há educação neutra, posto que toda educação fundamenta-se numa concepção de homem e numa concepção de sociedade, trata-se de definir de qual homem e de qual sociedade estamos falando. Como não faz sentido pensarmos no indivíduo livre numa sociedade anarquista, trata-se de educar um homem comprometido não com a manutenção da sociedade de exploração, mas sim com o engajamento na luta e na construção de uma nova sociedade. Trata-se, em outras palavras, de criar um indivíduo “desajustado” para os padrões sociais capitalistas. A educação libertária constitui-se, assim, numa educação contra o Estado, alheia, portanto, aos sistemas públicos de ensino.
O PARADIGMA ANARQUISTA E A EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA
O mote progressista nas discussões pedagógicas contemporâneas é a defesa da escola pública. A atual Constituição brasileira afirma que a educação é um “direito do cidadão e um dever do Estado”, definindo desde o início a responsabilidade do Estado para com a educação. Ela é, porém, um empreendimento bastante dispendioso, como sabemos, e por certo esse interesse do Estado não pode ser gratuito ou meramente filantrópico. A história nos mostra que os assim chamados sistemas públicos de ensino são bastante recentes: consolidam-se junto com as revoluções burguesas e parecem querer contribuir para transformar o “súdito” em “cidadão”, operando a transição política para as sociedades contemporâneas. Outro fator importante é a criação, através de uma educação “única”, do sentimento de nacionalidade e identidade nacional, fundamental para a constituição do Estado-nação.
Os anarquistas, coerentes com sua crítica ao Estado, jamais aceitaram essa educação oferecida e gerida por ele; por um lado, porque o Estado certamente utilizar-se-á deste veículo de formação/informação que é a educação para disseminar as visões sócio-políticas que lhe são interessantes.
Nesse ponto a pedagogia anarquista diverge de outras tendências progressistas da educação, que procuram ver no sistema público de ensino “brechas” que permitam uma ação transformadora, subversiva mesmo, que vá aos poucos minando por dentro esse sistema estatal e seus interesses. O que nos mostra a aplicação dos princípios anarquistas a essa análise é que existem limites muito estreitos para uma suposta “gestão democrática” da escola pública. Ou, para usar palavras mais fortes mas também mais precisas, o Estado “permite” uma certa democratização e mesmo uma ação progressista até o ponto em que essas ações não coloquem em xeque a manutenção de suas instituições e de seu poder; se este risco chega a ser pressentido, o Estado não deixa de utilizar de todas as suas armas para neutralizar as ações “subversivas”.
É por isso que, na perspectiva anarquista, a única educação revolucionária possível é aquela que dá-se fora do contexto definido pelo Estado, sendo esse afastamento mesmo já uma atitude revolucionária. A proposta é que a própria sociedade organize seu sistema de ensino, à margem do Estado e sem a sua ingerência, definindo ela mesma como aplicar seus recursos e fazendo a gestão direta deles, construindo um sistema de ensino que seja o reflexo de seus interesses e desejos. É o que os anarquistas chamam de autogestão.
CONSIDERAÇÕES À MANEIRA DE UMA CONCLUSÃO
Tomar os princípios filosófico-políticos do Anarquismo como referencial para pensar a educação contemporânea é pois uma empresa de movimento; se podemos, por um lado, sistematizar tais princípios a partir dos “clássicos” do século passado e do início deste, traduzindo-os para a contemporaneidade de nossos problemas, não encontramos, ainda, um “solo firme” para nossas respostas – não no sentido de que elas não tenham consistência, mas sim que apontam sempre para uma realidade em construção que processa a des-construção de nosso cotidiano.
Se há um lugar e um sentido para uma escola anarquista hoje, esse é o do enfrentamento; uma pedagogia libertária de fato é incompatível com a estrutura do Estado e da sociedade capitalista. Marx já mostrou que uma sociedade só se transforma quando o modo de produção que a sustenta já esgotou todas as suas possibilidades; Deleuze e Guattari mostraram, por outro lado, que o capitalismo apresenta uma “elasticidade”, uma capacidade de alargar seu limite de possibilidades. É certo, porém, que sua constante de elasticidade não é infinita: para uma escola anarquista hoje trata-se, portanto, de testar essa elasticidade, tensionando-a permanentemente, buscando os pontos de ruptura que possibilitariam a emergência do novo, através do desenvolvimento de consciências e atos que busquem escapar aos limites do capitalismo.
No aspecto da formação individual, Henri Arvon já afirmava, em 1979, que para uma sociedade de rápidas transformações como é a nossa, o projeto educativo anarquista parece ser o que melhor responderia às necessidades de uma educação de qualidade. O desenvolvimento científico-tecnológico e especialmente as transformações geopolíticas nesses últimos quinze anos vieram a confirmar essa necessidade de uma educação dinâmica e autônoma, que encontra cada vez maiores possibilidades de realização com o suporte da informática e da multimídia. Não podemos, entretanto, deixar que a própria perspectiva libertária da educação seja cooptada pelo capitalismo, neutralizando seu caráter político transformador, levando-a para um âmbito de liberdade individual e desembocando num novo escolanovismo, aparelhado pelas novas tecnologias. O caráter político da pedagogia libertária deve ser constantemente reafirmado, na tentativa de não permitir o aparecimento de uma nova massa de excluídos, tanto do fluxo de informações quanto das máquinas que permitem o acesso a ele.
Por outro lado, o desenvolvimento tecnológico que leva-nos cada vez mais rápido rumo a uma “Sociedade Informática”, para utilizarmos a expressão de Adam Schaff, define um horizonte de possibilidades de futuro bastante interessantes; numa sociedade que politicamente não se define mais com base nos detentores dos meios de produção, mas sim com base naqueles que têm acesso e controle sobre os meios de informação, encontramos duas possibilidades básicas: a realização de um totalitarismo absoluto baseado no controle do fluxo de informações, como o pensado por Orwell em seu 1984 ou por Huxley em seu Admirável Mundo Novo, ou então a realização da antiga utopia da democracia direta, estando o fluxo de informações autogerido pelo conjunto da sociedade. Em outras palavras, o desenvolvimento da sociedade informática parece possibilitar-nos duas sociedades, uma antípoda da outra: a totalitária, com o Estado absoluto, ou a anarquista, absolutamente sem Estado; a escolha estaria fundada obviamente numa opção política que só seria possível através da consciência e da informação, aparecendo então a figura da educação, formal ou informal, no sentido de sustentar tal conscientização.
Mas a possibilidade de trabalho que parece-me mais próxima no momento é o pensar a filosofia da educação no contexto do paradigma anarquista. Se tal filosofia da educação pode servir de suporte teórico para a construção deste projeto de educação que tem por meta a autogestão e a verdadeira democracia que a tecnologia informática pode finalmente tornar possível através de uma rede planetária que imploda as fronteiras dos Estados-nação, ela pode ainda servir-nos como ferramenta de análise e crítica da sociedade capitalista e da educação por ela pensada, assim como do sistema de ensino por ela constituído – a sempre ambígua dualidade dos sistemas público e privado. No caso específico do Brasil contemporâneo, ela pode constituir-se num interessante referencial para a discussão e análise dos graves problemas educacionais que enfrentamos, de uma perspectiva bastante singular, como no caso da qualidade do ensino e da publicização/democratização da escola, trazendo contribuições criativas diferentes das usuais.
No contexto da polarização da filosofia da educação brasileira entre a tendência neo-liberal – privatizadora – sucessora das tendências tradicional, escolanovista e tecnicista como expressão ideológica da manutenção do sistema e uma tendência dialética que, por sua vez, encontra-se dividida em várias propostas de análise e tem sido – erroneamente – posta em xeque como paradigma devido à crise do assim chamado “socialismo real”, tomada como a falência do método dialético e o triunfo do liberalismo – novo ou velho, não importa – e a instauração de uma “nova ordem mundial” centrada no paradigma liberal, a tendência anarquista ou libertária pode apresentar-se como um novo referencial para a análise, ao mostrar, explicitamente, que , como cantou Caetano Veloso, “alguma coisa está fora da nova ordem mundial”. O que tentei aqui foi tão somente trazê-la para a luz das discussões, buscando sua viabilidade.
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