sexta-feira, 5 de março de 2010

Mais de 10 mil cesarianas desnecessárias em 2004

A taxa de cesarianas realizadas em Portugal está acima da média europeia e muito além do que é aconselhado pela Organização Mundial de Saúde. Em 2004, ultrapassou os 30% de partos realizados no Sistema Nacional de Saúde (SNS). No privado, terá chegado aos 65%. Para os especialistas portugueses, a média deveria ser de uma em cada quatro ou cinco partos. O que significa que houve, em Portugal, mais de dez mil cesarianas desnecessárias.

As cesarianas custam, em média, o dobro de um parto normal (podendo a diferença chegar a quase quatro vezes mais). Isto representa um custo acrescido para o Sistema Nacional de Saúde que pode variar, no mínimo, entre os cinco e os dez milhões de euros. E a tendência dos últimos anos tem sido para o aumento crescente da taxa de cesarianas realizadas (ver gráfico), o que significa que o País está a piorar nos indicadores de qualidade.

Os hospitais públicos portugueses registaram perto de 28 mil nascimentos por acto cirúrgico em 2004, ano com mais de 92 mil partos. Se a taxa de cesariana tivesse seguido o que é média na Europa (20 a 25%), deveriam ter-se realizado entre 18 e 23 mil partos com recurso a cirurgia. Se a estes números se juntar a realidade das clínicas privadas - com 17 mil partos a ocorrer fora do SNS -, existe um conjunto mínimo de dez a 15 mil cesarianas que escapam ao patamar estabelecido.

Mudança social

A realidade considerada aceitável em Portugal está, ainda assim, acima do que é a média preconizada, desde meados dos anos 80, pela Organização Mundial de Saúde, segundo a qual as cesarianas de razão clínica serão 15% dos partos. Mas, explica Luís Mendes da Graça, presidente do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos, as condições sociais e jurídicas alteraram-se muito nos últimos 20 anos, o que justifica uma taxa entre os 20 e os 25%.

Em primeiro lugar, explica o especialista, o aumento do número de cesarianas em Portugal ficar- -se-á a dever ao facto de "haver cada vez mais processos em tribunal de mães descontentes com o parto". O acto cirúrgico inscreve-se assim numa "estratégia defensiva dos obstetras, que é legítima", considera o responsável da Ordem dos Médicos.

Por outro lado, explica, também que as condições de trabalho dos médicos são diferentes. "Os hospitais não têm profissionais suficientes para que haja tranquilidade na tomada da decisão mais apropriada." Há equipas a fazer turnos de 24 horas e muitas cesarianas, diz, são decididas pelos médicos à meia- -noite ou uma da manhã, na sequência de trabalhos de parto prolongados. Ou seja, "no momento do cansaço e antes de entrar pela madrugada adentro, porque as pessoas não são máquinas".

A imagem de um país

Por outro lado, há ainda grandes disparidades de cesarianas entre hospitais. O que, segundo Luís Graça, se explica, no caso das unidades de cuidados diferenciados, pelo facto de receberem as situações de gravidezes de risco - como as que resultam, por exemplo, das recentes tecnologias de procriação medicamente assistida - e de patologias graves, materna ou fetal, em que quase sempre existe indicação médica para a cirurgia.

Mas, ainda assim, há grandes diferenças, mesmo entre unidades de natureza semelhante. De acordo com números provisórios de 2004, a que o DN teve acesso, a Maternidade Alfredo da Costa (Lisboa) tem uma taxa de cesarianas que chega aos 32,9%, enquanto a Júlio Dinis (no Porto) está nos 42,9%.

Existem também outras grandes disparidades entre instituições hospitalares do sector público. O Hospital Padre Américo (Penafiel, com 2506 partos) e o Hospital Garcia de Orta (Lisboa, com 3847 partos) têm respectivamente uma taxa de 20,8 e 21,3%. O Hospital de S. João (no Porto, com 2768 partos) chega aos 28,7% e o Hospital Pedro Hispano (em Matosinhos, com 2038) atinge os 36,3%. Em Portalegre, a taxa de cesarianas é de 31,4%, para 458 partos, enquanto em Chaves chega aos 51,6%, para 494 partos.

Para Jorge Branco, presidente da Comissão Nacional de Saúde Materna e Neonatal (CNSMN), a questão está "nas cesarianas desnecessárias e evitáveis". Ou seja, nem sequer é "uma questão de poupar". O problema é que "os actos médicos devem ser feitos quando há indicações para o fazer". Porque nenhum acto cirúrgico é isento de risco e as cesarianas representam, por exemplo, um aumento acrescido de mortalidade e morbilidade materna e neonatal.

As causas

Porque está a crescer a taxa de cesariana? "Há causas que são inevitáveis, como, por exemplo, o facto de estar a aumentar a idade materna na primeira gravidez, o que causa também um maior número de situações patológicas", explica o presidente da CNSMN. Mas haverá "razões discutíveis, nomeadamente no que diz respeito à indução intempestiva do trabalho de parto", diz Jorge Branco. Ou seja, quando a uma mulher, sem indicação clínica formal, o médico induz o parto - por "comodidade do próprio profissional ou por pressão da mãe".

Há ainda, por vezes, erros de leituras de exames ou também o facto de mais cesarianas hoje implicarem menos partos vaginais amanhã, porque aumenta o risco do acto cirúrgico em segundas gravidezes. E há também o "problema da comunicação social, que tende a apresentar a cesariana como o acto que resolve tudo, quando daí nem sempre resulta benefício para a mãe ou criança". Uma questão, para Jorge Branco, é que nas cesarianas - que transferem o nascimento para as mãos do cirurgião - "as mulheres não estão a responsabilizar-se por fazer nascer o seu filho e, se calhar, não estamos a pensar nisso, que é um privilégio".



Fonte: Diário de Notícias - 26 Março 2006
Jornalista: Elsa Costa e Silva André Carrilho

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